Ontem, dia 18 de julho de 2017, Internacional (RS) e Luverdense (MT) jogaram pela 15ª rodada do Campeonato Brasileiro da série B e participaram de um dos momentos mais sui generis (sem igual) da história do futebol.
No campo, o time gaúcho, que tem a maior folha salarial dos que disputam o campeonato (algo em torno de R$ 7 milhões mensais)[1], pressionou o time mato-grossense e só não abriu o placar antes dos 47 minutos do segundo tempo devido às “milagrosas” defesas do goleiro Diogo Silva. Entretanto, nem mesmo a excepcional partida do arqueiro do Luverdense foi capaz de impedir o gol e a vitória do Colorado.
Até aí, nada de mais. O time com o melhor e mais bem pago elenco da série B venceu um adversário que estava na zona de rebaixamento.
Mas esta vitória foi considerada uma das mais inusitadas, pois ela veio a partir de um erro grotesco do árbitro assistente que estava no campo de ataque do Internacional. O assistente assinalou o impedimento do atacante William Pottker após receber o passe de Carlos. Ato contínuo, os jogadores do Luverdense ao avistarem a bandeira do assistente levantada pararam no lance. Porém, o árbitro, entendendo que Pottker não participara do lance, deu prosseguimento ao jogo e Joanderson ao receber a bola tocou para Pottker que, sozinho e com os jogadores da defesa adversária parados, marcou o gol sem dificuldade. Veja o lance.
De início, é importante dizer que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF – entidade máxima do futebol brasileiro) divulga anualmente as “Regras de Futebol” (livro de regras aprovado nas reuniões da International Football Association Board – IFAB, entidade responsável por analisar e modificar tais regras).
De acordo com estas Regras, o árbitro “tem total autoridade para cumprir as regras do jogo” (Regra 05: O árbitro – 1. A autoridade do árbitro)[2], “possui poder discricionário para adotar as medidas adequadas para cumprir a essência das regras do jogo” (Regra 05: O árbitro – 2. Decisões do Árbitro)[3] e os oficiais de arbitragem o ajudam “a controlar o jogo de acordo com as regras, sendo a decisão final tomada sempre pelo árbitro” (Regra 06: Os outros oficiais de arbitragem)[4]. Significa dizer que ainda que o árbitro assistente levante a bandeira indicando um eventual impedimento, o árbitro, por ter um entendimento diverso, não é obrigado a seguir a marcação do assistente e pode dar continuidade à partida. Inclusive, os jogadores são aconselhados a seguirem na disputa da bola, até que o árbitro apite e confirme o impedimento. Sob esse ponto, é possível afirmar que os jogadores do Luverdense não deveriam ter interrompido a marcação dos jogadores adversários na jogada.
Também é importante esclarecer que o presente texto não pretende, no momento, entrar em discussão acerca do jogador Pottker estar ou não em impedimento, pois é notório que se trata de um lance interpretativo e que ensejaria, caso os oficiais de arbitragem se enganassem, num erro de fato (isto é, um erro de interpretação). Apenas à guisa de opinião, e respeitando as posições contrárias, entendo que o atacante do Inter (que estava em posição de impedimento, e isso é ponto pacífico) deveria ter sido punido, ou seja, o impedimento deveria ter sido marcado, pois ele (i) iniciou o movimento de corrida e foi em direção à bola (mudando de direção tão somente quando percebera que não a alcançaria e que seu companheiro de time estava se aproximando – Regra 11. Item 2. Interferindo em um adversário de uma das seguintes maneiras: tentando claramente jogar a bola que se encontre próxima de si e quando essa ação causar impacto no adversário)[5] e (ii) esbarrou no zagueiro da Luverdense, ainda que sem intenção, impedindo à sua passagem antes do Joanderson alcançar a bola (Regra 11: Item 2. Interferindo em um adversário de uma das seguintes maneiras: Impedindo um adversário de jogar ou de poder jogar a bola ao obstruir claramente sua linha de visão)[6].
Conquanto seja de crucial importância, por ser um lance que comporta interpretações diversas (o Pottker não fez menção de ir em direção à bola; ele não interferiu no lance; ele não impediu o adversário de ir em direção à bola etc.), como mencionei acima, o árbitro também poderia ter diversas interpretações. Por esse motivo, não pretendo dar continuidade à discussão do assunto.
Dito isso, entro no tópico que entendo ser central na análise do fatídico lance. Não obstante ter voltado atrás na sua marcação, o árbitro assistente com a mão na cabeça (um gesto claro de arrependimento) adentrou no campo de jogo, com a partida ainda em andamento. Será que esta atitude, por si só, poderia ensejar a anulação da partida? Vejamos.
O livro regra de 2016/2017, no tocante aos árbitros assistentes, autoriza-os a entrar no campo de jogo em uma única situação, qual seja: “o árbitro assistente pode entrar no campo de jogo para controlar a distância dos 9.15m” (Regra 06: Os outros oficiais de arbitragem – 1. Árbitros assistentes)[7].
Além disso, juntamente com as Regras, são divulgadas “Linhas de orientação prática para os oficiais da equipe de arbitragem”[8]. Este texto, ao orientar os oficiais de arbitragem acerca da distância exigida num tiro livre, diz o seguinte: “Quando haja um tiro livre muito perto da linha lateral, onde se encontra o árbitro assistente, este pode entrar no campo de jogo (normalmente a pedido do árbitro) para se assegurar que os jogadores estão a 9,15 metros da bola. Neste caso, o árbitro deve esperar até que o árbitro assistente retome o seu lugar antes de reiniciar o jogo”[9]. Ainda de acordo com as “linhas de orientação”, no que tange o “Posicionamento e trabalho de equipe” o texto faz menção à “Consulta” entre os oficiais de arbitragem nos termos que seguem: “Relativamente a questões disciplinares, um olhar e um sinal discreto de mão do árbitro assistente para o árbitro são normalmente suficientes. No caso de ser necessária uma consulta direta, o árbitro assistente pode penetrar 2-3 metros no campo de jogo. Enquanto trocam impressões devem ambos virar-se para dentro do campo, para evitar que a sua conversa possa ser entendida e para observar os jogadores e o campo de jogo.”[10].
Ora, levando em consideração as “Regras de Futebol” e as “Linhas de orientação prática para os oficiais da equipe de arbitragem”, resta claro que é defeso ao árbitro assistente, em regra, adentrar o campo de jogo. As exceções (controlar a distância dos 9.15m e na consulta direta, quando o árbitro assistente pode penetrar 2-3 metros no campo de jogo) ocorrem nas ocasiões em que o jogo foi sido interrompido. A corroborar com esse entendimento, a outra orientação supracitada diz claramente que “o árbitro deve esperar até que o árbitro assistente retome o seu lugar antes de reiniciar o jogo”. Em outras palavras, enquanto o jogo estiver em andamento, o árbitro assistente não pode estar dentro do campo. Caso esteja, ele não só pode como deve ser considerado pessoa extra no campo de jogo.
O item 9, da Regra 03 (Dos Jogadores)[11], dispõe sobre os gols marcados com pessoa extra dentro de campo: “Se, após a marcação de um gol e antes de o jogo ser reiniciado, o árbitro perceber que uma pessoa extra se encontrava dentro do campo de jogo no momento em que o gol foi marcado: o árbitro deve invalidar o gol se a pessoa extra era: agente externo que interferiu no jogo, a menos que o gol haja sido marcado de acordo com a situação descrita em ‘pessoas extras no campo de jogo’”[12].
Nota-se, no caso em tela, que o árbitro olha para o assistente antes de a bola passar a linha do gol, no momento em que o assistente já estava dentro do campo de jogo. Ademais, o próprio árbitro assistente, ou outro oficial de arbitragem, deveria ter informado a situação ao árbitro, pois, conforme regra já citada acima, os oficiais de arbitragem “ajudarão o árbitro a controlar o jogo de acordo com as regras, sendo a decisão final tomada sempre pelo árbitro”.
Seguindo a linha de raciocínio, o árbitro assistente estava dentro do campo de jogo enquanto a partida estava em andamento (logo, pode ser considerado pessoa extra em campo) e ele, claramente, interferiu no jogo de maneira direta (entrou em campo e causou um estranhamento por parte dos jogadores e do próprio árbitro). Portanto, pode-se dizer que o árbitro errou ao validar o gol. Um erro que, não pode ser considerado um erro de fato. Não há interpretação: o árbitro assistente entrou em campo! De tal sorte, é possível argumentar que tal erro pode ser considerado um erro de direito.
O erro de direito “(…) é a ignorância ou desconhecimento da existência de lei, fato que não é motivo à sua não aplicação. Porém, em sendo o erro considerado substancial, anuláveis serão os atos praticados, pois, interessa ‘à natureza do negócio, o objeto principal da declaração ou alguma das qualidades a ele essenciais’. (…)”[13].
O Capítulo VII (Das Infrações Relativas À Arbitragem), do Código Brasileiro de Justiça Desportiva de 2003, no artigo 259 determina:
Art. 259. Deixar de observar as regras da modalidade.
(…)
§ 1º A partida, prova ou equivalente poderá ser anulada se ocorrer, comprovadamente, erro de direito relevante o suficiente para alterar seu resultado.
(…).
Nesse sentido, caso seja comprovado que a situação aqui descrita enseja num erro de direito (o árbitro deixou de cumprir o que determina as “Regras do Futebol”), ainda que muito remota, há uma possibilidade da partida ser anulada.
Contudo, essa possibilidade pode ser sumariamente afastada, caso o árbitro assistente, apesar de não poder entrar dentro do campo de jogo com a partida em andamento, não seja considerado um agente externo (o Código é confuso em relação a isso).
Em conclusão, se houve um time que mereceu a vitória nessa partida, esse time foi o Internacional. Além disso, os colorados não têm culpa do erro do árbitro assistente nem dos defensores do Luverdense terem parado na jogada. Do mesmo modo, os mato-grossenses não podem receber o ônus de tal erro e nem abrir mão caso tenham algum direito. Em todo caso, a “injustiça” (no seu sentido mais popular) será feita para um dos dois lados.
PS: insta mencionar que este texto foi escrito a partir de uma análise superficial e que, portanto, não procura defender ou afastar uma eventual pretensão de anulação da partida. Ele serve apenas para inserir novas informações à situação que ocorreu em Porto Alegre e que foi amplamente debatida.
[1] DECONTO, Eduardo. Inter sobe folha em R$ 1 mi e explica: “A do ano passado nos rebaixou”. Globo Esporte, Porto Alegre, 03 de abril de 2017, 8h00. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/rs/futebol/times/internacional/noticia/2017/04/inter-sobe-folha-em-r-1-mi-e-explica-do-ano-passado-nos-rebaixou.html. Acesso em: 19 jul. 2017.
[2] CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL [CBF]. Regras de Futebol 2016/17. Rio de Janeiro, dezembro de 2016. Disponível em: http://cdn.cbf.com.br/content/201612/20161220181822_0.pdf. Acesso em: 19 jul. 2017.
[3] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[4] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[5] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[6] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[7] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[8] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[9] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[10] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[11] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[12] Ibidem.. Acesso em: 19 jul. 2017.
[13] ENCICLOPÉDIA JURÍDICA. Disponível em: hhttp://www.enciclopedia-juridica.biz14.com/pt/d/erro-de-direito/erro-de-direito.htm. Acesso em: 19 jul. 2017.